Resiliência na linha de frente: A Luta de um enfermeiro contra o maior surto de cólera de Moçambique

Oscar Alfredo, enfermeiro geral no Centro de Saúde de Nacape, Nampula, foi um dos profissionais que se encontrou na linha de frente desde o início do surto de cólera em 2022.
Tiago Zenero / WHO Mozambique.
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Resiliência na linha de frente: A Luta de um enfermeiro contra o maior surto de cólera de Moçambique

 

Entre setembro de 2022 e meados de 2024, Moçambique viveu o pior surto de cólera dos últimos 20 anos. O país, que já enfrentava desafios na área da saúde, viu-se diante de uma situação ainda mais dramática quando, até 14 de Julho de 2024, foram reportados 49.013 casos suspeitos e 179 óbitos em 93 distritos de todas as 11 províncias. A propagação da doença parecia implacável, atingindo as áreas mais vulneráveis e criando um cenário de grande pressão para as autoridades sanitárias.

Nesse contexto de crise, o Ministério da Saúde não estava sozinho. A Organização Mundial da Saúde (OMS), comprometida com o apoio, esteve presente em todas as províncias afetadas, montando tendas, distribuindo kits de prevenção e tratamento e trabalhando incansavelmente nos Centros de Tratamento de Cólera (CTCs). O esforço conjunto entre o governo, a OMS, a população e diversas outras instituições foi fundamental para o controle do surto, mas os desafios foram imensos.

Oscar Alfredo, enfermeiro geral no Centro de Saúde de Nacape, na cidade de Nacala, província de Nampula, foi um dos profissionais que se encontrou na linha de frente desde o início. Com o aumento de casos, ele foi transferido para um dos CTCs como enfermeiro-chefe, e sua rotina mudou completamente.

“Os insumos estavam a reduzir, e chegavam novos casos. Houve um período em que começamos a ficar sem materiais e quase entramos em estoque zero, mas não podíamos parar”, ele recorda.

Além da escassez de recursos, a equipe de saúde enfrentava outros desafios, como o cansaço extremo, o medo constante de não ser capaz de atender a todos, e a pressão de trabalhar sob condições difíceis. Mas Alfredo e seus colegas não desistiram. Na entrevista a seguir, ele compartilha como, apesar das dificuldades, conseguiu se manter motivado, adaptando-se à nova realidade e superando cada obstáculo para garantir que o surto fosse finalmente controlado.

Qual foi a sua percepção ao notar que esse surto de cólera era muito maior do que todos que vocês já haviam enfretado antes?

Primeiro, não vou negar, pessoalmente, desenvolvi o medo, pela situação que estava a acontecer no momento. O número de enfermeiros que tínhamos a nível local era baixo: somos dois. Dois enfermeiros não tínhamos condição de dar atenção a todo os casos aqui. Então, tínhamos que trabalhar duro, visto que nós não respondemos somente na área de enfermegem, temos que fazer cobertura em outras áreas, e isso fazia com que o fluxo de atendimento ficasse congestionado e por isso era necessário priorizar. 

O senhor tinha medo de contrair a doença?

Eu fiquei com medo sim, porque a manifestação dos prórpios pacientes com vômitos e diarreia ia de forma descontrolada. Os EPIs que tínhamos que usar para nos protegermos em relação àquela situação eram insuficientes, não estávamos ainda devidamente preparados para poder tratar aqueles tipos de casos. Eu ficava com medo de fazer de mal jeito e acabar nós mesmos nos contraindo e nos transmitindo a doença. 

O que precisou ser adequado no centro de saúde para receber os pacientes?

Em relação a questão da infraestrutura, não tínhamos a capacidade ao nível do nosso centro de saúde em fazer a gestão dos casos no surto da cólera. Muitas das vezes, por termos insuficientes número de camas para os pacientes, tínhamos que referir para o hospital geral, que é o mais grande. Passado esse período, teve-se que arrecadar apoio com outros parceiros, com o próprio governo, o Ministério [da Saúde], a OMS e diversos outros parceiros, para responder a essa questão do surto foi preciso montar as tendas para atendimento. 

Em qual estado os pacientes chegavam ao centro de saúde para atendimento?

Tinham pacientes que entravam com diarreia em uma condição aguda. E tinham casos ainda mais graves, sabíamos que esses casos, ao nosso nível, não dava para deixar mais nem um minuto. Então solicitávamos serviços de emergência para evacuar aqueles pacientes para pontos de concentração onde tinham a capacidade de recebê-los, que era o hospital geral. 

Como foi a experiência de lidar com a escassez de insumos e a pressão para atender aos novos casos de cólera durante o surto?

Sempre que já apareciam novos casos, vinha aquilo à cabeça: ‘esses casos não param, não estão a parar, e nós também não podemos parar’. Os insumos estavam a reduzir, tínhamos que requisitar mais, a ver se conseguíamos atender aqueles novos casos. Chegou a ter um período em que começamos a entrar em estoque zero desses insumos. Foi muito difícil. Mas não tardou a ajuda, e começamos a ter muita ajuda. Teve a instalação de tendas específicas para o tratamento de cólera. Foi preciso tirar enfermeiros de todos os centros que existiam para responder a um nível das tendas. Eu também fui uma das pessoas que foi levada para ir responder ao nível do Centro de Tratamento da Cólera.

E como foi essa mudança para o CTC?

Lá, nos primeiros dias, não foi fácil. Todo mundo queria estar lá, mas quando chegávamos, não éramos motivados. A questão da higiene era difícil, às vezes nós tínhamos que pulverizar o cloro no assoalho, nas camas, até nos pacientes para podermos manusear o corpo deles. Não era fácil. Nós lá dentro… o ambiente não era agradável, mas sabíamos que não tinha outro caminho para ver se melhorávamos a situação. Mas o ambiente, em questão de higiene… Nos primeiros dias foram difíceis, não tínhamos baldes para a gestão daqueles dejetos, não tínhamos camas suficientes. Fazíamos turnos muito prolongados, mas ao longo do tempo isso mudou. Recebemos ajuda, contratou-se novos profissionais, a OMS estava lá, o UNICEF estava lá, a Cruz Vermelha, e o Médicos sem Fronteiras. Todas essas organizações fizeram muito para a mudança do cenário.

Quando houve a mudança para o CTC e o senhor viu todos os desafios que existiam por lá, o senhor chegou a pensar em desistir?

Eu nunca pensei em desistir. Eu sabia que aquilo era meu trabalho, eu amanhecia e dizia, preciso trabalhar, preciso fazer alguma coisa, porque eu também conheço como a nossa população interpreta os cuidados de saúde que prestamos a nível local. Nós precisamos fazer alguma coisa para mostrar que estamos aqui para ajudar. Eu, principalmente, fui escolhido como enfermeiro-chefe e tinha que motivar a minha equipe, dizer que temos que trabalhar, nos entregar, não podemos ter óbitos, tudo aquilo temos que lutar para os pacientes amanhecerem conosco. A rotina era aquela. 

E o que te motivava a seguir trabalhando?

O que me motivava, acima de tudo, a vida de uma pessoa. Eu, pessoalmente, digo, doi-me ver um paciente em um estado de gravidade que sabemos que a qualquer momento podemos perdê-lo, e aqueles pacientes em um estado grave, nós temos que carregá-lo a fazer vômitos e necessidades maiores no mesmo lugar, nós sentíamos que precisávamos fazer alguma coisa sim, mas acima de tudo, de salvar a vida daquela pessoa. Doía muito termos que fazer tanto esforço para ver aquela pessoa perder a vida. Mesmo se tivéssemos uma situação novamente desse caso, acredito que seria o primeiro a dizer ‘eu estou lá, para fazer o meu trabalho’.

E a que o senhor atribui o sucesso em terminar com esse surto, que foi o maior que Moçambique já enfrentou nos últimos 20 anos?

Para atingir o sucesso em terminar com o surto, as pesoas conseguiram nos ouvir. Nós tínhamos que fazer a promoção da saúde, falar sobre as medidas de prevenção contra a cólera, sobre a questão da higiene geral, higiente coletiva e individual, tínhamos que promover tudo isso e a equipe já era maior. Tínhamos pessoas a trabalhar a nível de comunidade, pessoas a fazerem trabalho a nível do centro de tratamento da cólera.Tínhamos a parceria com diversas instituições, inclusive a OMS esteve o tempo todo lá conosco. Todas aquelas que eram as orientações, as pessoas passaram a acatar, porque viam que sempre que não acatassem alguma coisa, os casos não paravam. Foi uma equipe que trabalhou muito unida, trabalhamos muito unidos naquela causa, e deu certo.

Com base em tudo isso que o senhor vivenciou desde o início do surto, a perda de pacientes, a falta de insumos e, lógico, o sucesso em conseguir recuperar muitas vidas e em terminar com esse surto, qual é a mensagem que o senhor deixa para a população?

A cólera é uma realidade e nós precisamos nos prevenir, principalmente com a higiene, mas também com a gestão do lixo, fazendo aterros, o que localmente chamamos de cofas. Tem pessoas que não têm casas de banho, precisamos cavar para não fazermos defecação a céu aberto. Sempre antes ou depois de comer, precisamos lavar as mãos. Tratar a água, a população não tem condições de comprar os produtos, cloro ou purificador, mas podemos ferver a água antes de consumir, ferver os alimentos antes de consumir. Isso é possível fazer nas condições que nós vivemos. E todas as recomendações do pessoal de saúde, nós devemos acatar. As recomendações técnicas da OMS, precisamos ouvir. O nosso dia a dia no hospital não é o dia das pessoas em casa, estão em rotinas sociais, mas nós estamos a ver doenças todos os dias, e conhecemos a causa. É nosso dever então passar esse conheciemnto adiante. É possível sim combater essa doença.

Oscar Alfredo, enfermeiro geral no Centro de Saúde de Nacape, Nampula, foi um dos profissionais que se encontrou na linha de frente desde o início do surto de cólera em 2022.
Tiago Zenero / WHO Mozambique.
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