​​​​​​​Uma declaração da Directora regional da Organização mundial da Saúde na Região africana sobre a tentativa de revogação da lei que proíbe a mutilação genital feminina na Gâmbia

Statement by the Regional Director on the attempt to repeal the law banning female genital mutilation in The Gambia

Brazzaville - O meu coração está com as mulheres e raparigas que sofreram com as consequências das sensibilidades culturais e tradicionais profundamente enraizadas em torno da mutilação genital feminina. Esta questão sensível afecta não só a Gâmbia, mas sobretudo as mais de 230 milhões de raparigas e mulheres sobreviventes que foram submetidas a uma mutilação genital em 30 países de África, do Médio Oriente e da Ásia, onde a mutilação genital é mais prevalecente.  

Os dados factuais demonstram que a mutilação genital feminina não traz benefícios para a saúde. Pelo contrário, causa danos, incluindo má cicatrização de feridas, problemas de saúde mental, complicações ginecológicas e urológicas, nados-mortos, aumento da intervenção obstétrica, como episiotomias e cesarianas, e morbilidades maternas, como trabalho de parto prolongado, lacerações obstétricas e hemorragias durante o parto.1,2,3

Algumas pessoas ainda acreditam que ao medicalizar ou mandar um profissional de saúde fazer a mutilição genital feminin, estão a prevenir os danos.4 A verdade é que a mutilação genital feminina é uma prática nociva, independentemente de quem a realiza, e não existe justificação médica para a sua realização.

Apesar dos esforços globais para erradicar a prática, mais de 3 milhões de raparigas e mulheres ainda estão em risco todos os anos. Se os nossos esforços de prevenção da mutilação genital feminina não forem reforçados, prevê-se que este número venha a aumentar para 4,6 milhões de raparigas até 2030.1 Na Gâmbia, estima-se que sejam gastos anualmente 4,5 milhões de dólares americanos para tratar complicações decorrentes da mutilação genital feminina,5 o que representa mais de 10% das despesas do governo com a saúde em 2021.6

Realizámos bons progressos em muitos países no que toca à mutilação genital feminina nas últimas décadas, tendo sido 1 em cada 3 raparigas vítima desta prática, em comparação com 1 em cada 2 raparigas, há 30 anos.7 Na Gâmbia, milhões de mulheres e raparigas receberam serviços de protecção e cuidados relacionados com a mutilação genital feminina desde a promulgação da Lei sobre as Mulheres (Emendas) de 2015, melhorando, assim, os seus direitos e a sua saúde sexual e reprodutiva.

A recente apresentação de um projecto de lei para revogar a lei poderá inverter os ganhos obtidos e pôr em risco a saúde e o bem-estar de milhões de mulheres e raparigas. A revogação da lei não só violaria a proteção dos direitos fundamentais das mulheres e das raparigas, como também poderia levar outros países a ignorar o seu dever de proteger esses direitos.

Esta acção seria contra as convenções internacionais sobre direitos humanos e as obrigações da Gâmbia perante estas convenções internacionais.8 Estas convenções exortam os Estados-Membros a tomarem medidas para prevenir a mutilação genital feminina e garantir cuidados de alta qualidade para as mulheres e raparigas já afectadas.

Embora reconheça as sensibilidades culturais e tradicionais em torno da mutilação genital feminina, também devemos reconhecer os danos físicos, psicológicos e de saúde que esta causa às raparigas e às mulheres.

Temos de continuar a priorizar a protecção das mulheres e raparigas contra práticas nocivas e promover os seus direitos a uma vida saudável e segura.

A OMS e os seus parceiros vão continuar a apoiar uma abordagem de tolerância zero para as mutilações genitais femininas, incluindo contra a medicalização das mutilações genitais femininas como descrito na Estratégia Mundial. 

Na sua qualidade de membros respeitados e de confiança da comunidade, apelo aos profissionais de saúde para que levem a cabo acções de sensibilização contra a mutilação genital feminina e não a pratiquem. Praticar a mutilação genital feminina a legitima e a perpetua, além de prejudicar os esforços que foram envidados para que seja abandonada. A mutilação genital feminina medicalizada viola a ética médica e o compromisso dos profissionais de saúde no seu princípio de “Não causar danos”.

Apelo a todas as partes interessadas, incluindo líderes políticos, prestadores de cuidados de saúde, organizações da sociedade civil e líderes comunitários, para que tomem medidas concretas no sentido de mudar as atitudes sociais que perpetuam a mutilação genital feminina na Gâmbia. Temos de defender a saúde e o bem-estar das mulheres e raparigas e garantir a afectação dos recursos necessários para as apoiar. Precisamos também de insistir na definição de quadros jurídicos que protejam os seus direitos. Trabalhando em conjunto, podemos criar um futuro em que todas as mulheres e as raparigas estejam livres da ameaça da mutilação genital feminina.

[1]   Mutilação Genital Feminina – Ficha Informativa da OMS de Fevereiro de 2024, https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/female-genital-mutilat…
3 Kaplan A, Forbes M, Bonhoure I, Utzet M, Martín M, Manneh M, Ceesay H. Female genital mutilation/cutting in The Gambia: long-term health consequences and complications during delivery and for the newborn. Int J Womens Health. 2013 Jun 17;5:323-31. doi: 10.2147/IJWH.S42064.
2 Bonavina G, Lina Spinillo S, Sotiriadis A, Bulfoni A, Kaltoud R, Salvatore S, Candiani M, Ivo Cavoretto P. Effect of type III female genital mutilation on obstetric outcomes: A systematic review and meta-analysis. Heliyon. 2024 Abr 8;10(8):e29336. doi: 10.1016/j.heliyon.2024.e29336.
4 Kaplan Marcusán A, Riba Singla L, Laye M, Secka DM, Utzet M, Le Charles MA. Female genital mutilation/cutting: changes and trends in knowledge, attitudes, and practices among health care professionals in The Gambia. Int J Womens Health. 2016 Apr 12;8:103-17. doi: 10.2147/IJWH.S102201.
6 Global Health Expenditure Database, https://apps.who.int/nha/database/ViewData/Indicators/en%20accessed%20A… Consultado a 24 de Abril de 2024
5 Tordrup D, Bishop C, Green N, Petzold M, Vallejo FR, Vogel JP, Pallitto C. Economic burden of female genital mutilation in 27 high-prevalence countries. BMJ Glob Health. 2022 Feb;7(2):e004512. doi: 10.1136/bmjgh-2020-004512. http://srhr.org/fgmcost/wp-content/uploads/2022/12/Gambia.pdf 
7 United Nations Children’s Fund, Female Genital Mutilation: A global concern. 2024 Update, UNICEF, New York, 2024 (https://data.unicef.org/wp-content/uploads/2024/03/FGM-Data-Brochure-v1…)
8 Objectivos de Desenvolvimento Sustentável 5.3, resolução 61.16 da Assembleia Mundial da Saúde, resolução A/RES/67/146 da Assembleia Geral da ONU, Convenção sobre os Direitos da Criança, Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e o Protocolo de Maputo.